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"Fui me tornando Luthier aos poucos"

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Nasci em Sabará, Minas Gerais, em 1958. Sou o terceiro de quatro irmãos, Veronica, Venicio, eu e Vênica. Minha mãe, Vênica dos Santos Lima, professora primária que aprendeu a tocar piano na juventude, cantarolava todos os hinos escolares enquanto trabalhava nos afazeres domésticos. Faleceu lúcida em 2018 aos 98 anos. Estes hinos e outras músicas de novenas e rezas marcaram minha infância. Meu pai, Arthur Lima Junior, falecido em 1982, era economista por profissão, pintor e historiador por hobby. Estudou violino ainda jovem e também adorava os pássaros e seus cantos. Em sua companhia aprendi a conhecer o canto de inúmeros pássaros e também aprendi a fazer gaiolas, daquelas de muitas reguinhas de madeira, cortadas e furadas manualmente sem máquinas ou equipamentos. Algumas dessas ferramentas usadas na feitura das gaiolas, eu (na infância) e meu pai trouxemos do meu avô, que depois de problemas de saúde já aos 90 anos, não usava mais. Era um grande prazer ouvir cantar aquele "pássaro preto" capturado filhote e criado numa gaiola feita em casa. Os passeios pelas matas e visitas nas fazendas dos amigos me familiarizaram com animais, árvores e as madeiras.

Gostava muito dos papagaios de papel habilmente construídos por minha irmã Veronica. Aos dez anos, mais ou menos, troquei os papagaios de papel pelos aeromodelos de balsa que se tornaram daí pra frente uma rotina de montar e voar. Comecei minha relação com os aeromodelos através do Sr. Niles Natal, dono da loja Aerobel no edifício Maleta em BH. Assim, comecei a desenvolver alguma habilidade fina com a madeira. Agora os pássaros de madeira voavam livres, mas o canto era bem diferente, o assovio das 15.000 rpm dos pequenos motores de dois tempos.



Aos quatorze anos fui morar com meu irmão, Venicio, e sua família em Urbana, Illinois, USA. Onde ele fazia seu mestrado na universidade local. Estudei lá o início do segundo grau, cursando física, matemática, química, e marcenaria como profissionalizante, além das matérias obrigatórias do currículo. Assim fui ajuntando uma série de números que sem saber viriam a ser muito úteis.



Voltando ao Brasil fui cursar o terceiro ano do segundo grau, me preparando para o vestibular. Naquela época, sem tanta televisão, sem internet e nenhum shopping, era de algum valor o garoto que sabia tocar um instrumento. Ganhei de minha irmã mais velha, Veronica, um violão Giannini. Comecei a frequentar aulas dadas pelo maestro Nelson Piló, em Belo Horizonte, e logo observei que dentre meus colegas, quase todos tinham um “palitinho calçando a pestana” para evitar um trastejo, um pedaço de fita durex fechando uma rachadura, ou uma tarraxa empenada em seu violão. De imediato me dispus a fazer estas pequenas correções nos instrumentos. A habilidade tinha algum treino nas gaiolas e aeromodelos, além do curso de marcenaria nos USA. O gosto pela música vinha de casa, do piano de mãe, dos pássaros engaiolados e soltos, do Strauss nas Valsas Vienenses e dos tangos de Gardel na vitrola.



Os vestibulares me levaram da Engenharia à Biologia. Para dar satisfação à pressão de ter que fazer um curso superior. Pois enquanto estudava, as mãos queriam de fato fazer algo que pudesse se materializar. Nunca houve intervalo no aeromodelismo ou na música. Conheci então dois professores de São Paulo que vieram lecionar violão na Fundação de Educação Artística, em Belo Horizante. Eram eles Noé Lourenço e Antônio Salles Penteado. Tive aulas com este último. Ambos tinham violões artesanais feitos pelo Shiguemitsu Suguiyama.


Estávamos então em 1977, quando no Brasil violões artesanais de qualidade eram importados e o pioneiro desta atividade era o saudoso Luthier Joaquim Dornellas (SP). Suguiyama havia chegado ao Brasil há pouco tempo e trabalhava como empregado na Giannini. Sua produção própria era muito pequena. Poucos o conheciam. Observador que eu era da sonoridade dos instrumentos e seus detalhes, não pude resistir à curiosidade de conhecer pessoalmente o fabricante daquela obra de arte. Fui a São Paulo e levei um cavaquinho que eu estava fazendo para mostrar ao Suguiyama e pedi a ele que me ensinasse a calcular a escala. Ele deu uma boa risada e me disse num português cheio de sotaque: "tem luthier famoso mundo a fora que não sabe fazer um violão afinado, levei dez anos para descobrir como se calcula corretamente uma escala. Se você for bom vai descobrir também". Deixei com ele meu telefone e a intenção de me tornar seu aprendiz.



Voltei pra casa feliz por ter visto seu trabalho de perto, conhecido sua oficina na garagem, intrigado com o cálculo da escala que parecia ser muito complicado, e quase certo de que ele jamais me chamaria para ser seu aprendiz. Busquei nas bibliotecas, nos livros de física e música a resposta para minhas perguntas sobre a construção da escala. Continuei minha busca como autodidata, paralelamente fazendo reparos em instrumentos de cordas e fabricando acessórios para instrumentos de orquestra. Neste período tive a satisfação de conhecer o luthier Sr. Luciano Rolla (RJ), com quem aprendi muito sobre os instrumentos de orquestra. Ele foi um dos maiores incentivadores do meu trabalho e também comprador das peças que eu produzia.



Não levei um ano para chegar a uma conclusão sobre o cálculo da escala, e mais ou menos no mesmo período recebi o esperado telefonema. "Você ainda está interessado em ser meu aprendiz?", era o Suguiyama do outro lado da linha. Tranquei minha matrícula na UFMG e fui morar na casa de amigos em SP. Durante meses de 1978 e 79 tive o privilégio de ser aprendiz de um autêntico luthier minucioso. Conhecedor de técnicas apuradas adquiridas como aprendiz do renomado Masaru Kono, em Tóquio, e que desenvolve, sem trégua até hoje, a busca de um som perfeito na sua concepção. Tenho a honra de ter sido citado pelo meu mestre da seguinte forma: "Tentei formar alunos oito vezes, acertei só uma com Vergilio Artur de Lima, que abriu sua própria oficina de lutheria em Sabará, Minas Gerais. Os outros não captaram a disciplina da virtuosa paciência japonesa."(Folha de São Paulo 22-06-90)



Voltando à minha terra natal, Sabará, edifiquei minha oficina, casei com minha amiga de infância, namorada e companheira de minha jornada, onde construímos uma bela família com nossos cinco filho, e agora sete netos.

 

 

Dos instrumentos que faço, o violão tem sido o instrumento de referência onde todos os progressos técnicos podem ser observados e avaliados. Numa busca incessante por qualidade acústica e funcional.

 

Em 1995 recebi para restauração um “Violão Romântico”, feito pelo luthier austríaco Johann Stauffer (Vienna 1860). Neste violão, pude observar vários itens técnicos introduzidos no mundo dos instrumentos de cordas por seu autor naquela época. As tarraxas todas do mesmo lado da cabeça (sistema mais tarde universalizado pelas guitarras Fender); O cavalete onde as cordas são presas por pinos cônicos (hoje, de uso comum à grande maioria dos violões de cordas de aço); A escala suspensa sobre o tampo (adotada por muitos fabricantes de violão da atualidade); E finalmente um item intrigante, o braço preso por um parafuso único no salto que tinha por objetivo tornar o violão desmontável. Fato sem aparente justificativa, uma vez que na época, teoricamente, não havia problemas de espaço. Este violão ainda trazia outro item técnico que já vinham sendo usado por outros fabricantes da época, o fundo com uma curvatura bastante pronunciada.

 

Desta restauração tirei lições que entendi que poderiam ser aproveitadas em meus instrumentos, trazendo grande progresso. Passei então a fazer um violão com um sistema de regulagem instantânea de altura de cordas, uma escala elevada e estrutura biconvexa. Batizei este modelo de CRESCENT. E então, técnica “CRESCENT” de construção tem sido estendida aos outros instrumentos de corda.

 

Como resultado, todos os instrumentos têm a altura de cordas que pode ser regulada instantaneamente, a escala elevada sobre o tampo, que facilita em muito a execução das notas da segunda oitava, e o tampo livre para vibrar em sua totalidade, produzindo mais “sustain” e um timbre peculiar. Tenho muito prazer em ver o resultado desse trabalho constante de desenvolvimento dos instrumentos.

 

Em 1986 confeccionei para a Orquestra da Sociedade Musical Santa Cecilia de Sabará, sob encomenda da Prefeitura Municipal, na gestão do então prefeito Diógenes Fantini, um conjunto de instrumentos: dois violinos, uma viola e dois cellos. Na mesma época comecei o trabalho com a viola caipira inspirado pelo violeiro e pesquisador Roberto Correa, e desde então, venho aprimorando o instrumento e introduzindo modificações que resultaram na viola de dez que faço hoje.

 

Mais tarde, em 2000 atendendo a uma sugestão de Hamilton de Holanda, comecei a desenvolver o bandolim de dez cordas. Ele já usava dois dos bandolins de oito cordas de minha fabricação, um deles elétrico. Foi dele a primeira encomenda de um bandolim de 10 cordas e que hoje ‘viralizou”, vários luthiers produzem o bandolim com cinco pares, um par de cordas mais grave, em Dó.

 

A demanda dos instrumentos é variada e sofre influência dos modismos. A partir de 2015 uma retração econômica muito grande trouxe uma mudança generalizada nos hábitos de consumo, inclusive dos músicos. Isso abriu os horizontes da necessidade de pesquisa em novos materiais, como os compósitos na fabricação de instrumentos. E após várias tentativas com os materiais modernos e alternativos, acabei voltando aos materiais tradicionais, às madeiras, porém com muito mais certeza de como utilizá-las de maneira acusticamente mais proveitosa. Desenvolvi então uma forma de estrutura própria utilizando madeiras brasileiras.

 

Na oficina tive a ajuda de todos meus filhos, cada qual à sua forma e em épocas diferentes. A Ana, que se especializou em marchetarias e paralelamente trabalhando como ourives e design de joias (Jóias do Oceano), o Francisco, hoje dedicado à Tecnologia de Informática, me ajudou na construção de vários contrabaixos acústicos e mais tarde fez os estojos que acompanhavam os instrumentos, a Adriana (Atelier Tangará) ajudando na construção dos estojos que acompanharam os instrumentos, além de fazer junto com seu companheiro Daniel, pandeiros e tambores, a Juliana, que encontrou nos retalhos das madeiras nobres dos instrumentos uma maneira de reaproveita-los criando formas originais lapidando as peças tal como jóias (Lapidu), e Mariana, a única das filhas que naturalmente tem gosto em tocar os instrumentos de cordas, também me ajudou na construção de contrabaixos e cellos. Todos trabalharam comigo durante o período universitário, quando ajudaram a custear os próprios estudos.

 

Juntas, Juliana e Mariana atuaram musicalmente com o duo “Fofoca Erudita”. Hoje, Mariana desenvolve seu trabalho de composição musical no projeto “Ideia Cantada”.


De 1980 até 2015 produzi uma média de 20 a 25 instrumentos por ano, entre violões, violas, bandolins, cavaquinhos, violinos etc. Durante todos estes anos, tive o prazer de ter o mestre Edyl Lourenço como parceiro na confecção dos estojos para os instrumentos. Grande conhecedor das madeiras e técnicas de marcenaria, aposentou-se em 2016, deixando uma lacuna no mercado.

 

Passando o conhecimento adiante

 

Venho organizando cursos de iniciação à arte da fabricação de instrumentos de cordas desde 1997, Onde o aprendiz percorre o caminho da construção, da montagem até o acabamento final. E, ao término do curso, o aprendiz recebe o instrumento que fez. Outros cursos de curta duração sobre temas e instrumentos específicos são organizados eventualmente. Com a mudança da perspectiva de aprendizado, tornaram-se mais viáveis as aulas avulsas, onde eu atendo à necessidade específica de cada aluno, na etapa que lhe interessa, e não mais cursos completos que tinham por objetivo ensinar todo o processo da fabricação de cada instrumento. De lá pra cá muitos alunos passaram por aqui.


Alguns dos encontros e seminários em que fui convidado a participar:

 

1- "Seminário de Musica instrumental de Ouro Preto" em 1986 organizado por Toninho Horta e Berenice Menegalli ;

2- Mostra “A confecção de Instrumentos de Corda” em Sabará, no ano de 1988, com apoio cultural da Superintendência de Museus de Minas Gerais.

3-Coordenador e professor do Curso de formação de Luthiers-(1997) No CAIC atendendo à convite do então Prefeito de Sabará, Dr. Diógenes Gonçalves Fantini,

4- Workshop sobre "afinações/cordas de viola caipira" Durante Encontro de violeiros no Sesc SP em 1998.

5- Participante como convidado nas “Olimpiadas do Conhecimento” edição 2016 em novembro de 2016 expositor na “A arte do oficio” Brasilia promovido pela CNN 2016.

6- Convidado a construir réplicas dos instrumentos do musico Walter Smetak que foram utilizadas em turnê Mundial do Grupo estatal Alemão Ensemble Modern em 2017

6- Seminarios do IPHAN em 2017/2018 “viola mineira como patrimônio cultural”

 

Publicações em que meu trabalho como luthier é citado:

 

1- A Arte de pontear a viola- Roberto Correa- Projeto 3 Americas assoc. cultural-2000

2-O Violão brasileiro de Mozart Bicalho - Renato Sampaio- Edições Hematita – BH 2002

3-LUTHIERS- Artesãos musicais brasileiros- Carlos Roque- RJ 2003

4-Violões do Brasil- Myrian Taubkin- projeto Memória Brasileira -SP 2004

5-Violeiros do Brasil - Myrian Taubkin- projeto Memória Brasileira – SP 2008

6- Col.Artesanato e Cutura- “Artesanato na Musica” Girassol Comunicações-SP-2008

7-Viola de Minas- Claudio Alexandrino-Belo Horizonte 2008

8- Viola de Queluz- Valter Braga de Souza-Conselheiro Lafaiete-MG 2018

9-Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte- Roberto Corrêa-BSB 2019

 

Com o advento da Internet, tenho registrados algumas entrevistas e vídeos que podem ser encontrados no Youtube- Vergilio Lima Luthier.


 

Hoje, com 43 anos de profissão, vejo por vezes retornar ao ateliê um instrumento de minha autoria feito há 30 anos ou mais para alguma manutenção. Fico feliz em ver que estes instrumentos contam com o apreço de seus donos, músicos que os tiveram como companheiros ao longo de todo este tempo. E me emociono quando recebo algum músico que ao experimentar um dos instrumentos sorri afirmativamente, indicando ter encontrado naquele instrumento a sonoridade esperada e a facilidade de execução que lhe permite fazer música sem esforço. Espero ser premiado com a longevidade que me permita ainda trazer o som contido em tantas e belas madeiras que esperam caladas o momento de encantar aos apreciadores da boa música e dos trabalhos manuais finos.



Vergilio Artur de Lima / Sabará 2020

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